Alimentos: prisão civil e revisão em tempos de pandemia*

Postado em: 18/06/2020

Alimentos: prisão civil e revisão em tempos de pandemia*
*[artigo produzido antes da publicação da Lei nº. 14.010/2020. Conferir, ao final, a nota de atualização]


O evento pandêmico afetou as mais variadas relações travadas no seio da nossa comunidade. Alternativas estão sendo criadas a cada dia ante a necessidade de literalmente reinventar os regimes dos vínculos.


A situação obriga a todos a tomar decisões rápidas e, muitas vezes, sem saber ao certo se serão efetivas ou não, se delas virão apenas bons frutos ou se produzirão perversos efeitos colaterais. Estamos todos “trocando o pneu com o veículo em movimento”.

Esse cenário sensível ganha maior relevância nas relações de família, e, de acordo com o que vivenciado até o momento, é possível registrar alguns dos seus reflexos na pensão alimentícia devida aos filhos quanto à sua revisão e à prisão civil pelo seu inadimplemento.

Antes de tudo, registre-se que o diálogo é a via preferencial entre os envolvidos. Entretanto, é um caminho que exige o mínimo de bom relacionamento. Diante do fracasso da tentativa de solução amigável, abre-se a possibilidade de buscar o Judiciário, pois a urgência é inerente a esse assunto.

Pensão alimentícia para os filhos e a sua revisão. A lei brasileira permite que seja ajuizada ação revisional de alimentos quando as condições nas quais foram fixados sofram alterações relevantes, abalando sobremaneira a saúde financeira daquele que paga ou revelam que o alimentando não mais necessita daquela quantia, no todo ou em parte, para sua subsistência.

Pelos mais variados motivos, o dia a dia mostra que, com alguma frequência, alimentantes tentam se esquivar do pagamento da pensão mesmo quando possuem boa saúde financeira, concedendo relevância aos efeitos nocivos de uma união abandonada e deixando as necessidades dos filhos em segundo plano.

A verdade é que o cenário pandêmico, por si só, não autoriza a revisão da obrigação.

O obrigado ao pagamento precisa mostrar que as intempéries afetaram os seus rendimentos e lhe causam um irrefreável desequilíbrio nas finanças, afetando o próprio sustento. A mera dificuldade de pagar os alimentos não é gatilho da revisão da pensão, pois, afinal, em maior ou menor grau, faz parte da vida adulta enfrentar instabilidades financeiras.

Nesse contexto, aquele que usa de práticas pouco republicanas para declarar seus rendimentos, promovendo ocultação do patrimônio, tem especial dificuldade para mostrar que a situação catastrófica afetou a sua qualidade de vida. Isso é assim porque os tribunais brasileiros cada vez mais levam em consideração os sinais externos do modus vivendi do alimentante.

Imagine a situação de um trabalhador autônomo que, mediante apresentação de demonstrativo, afirma ter rendimentos mensais na faixa de dois salários-mínimos, mas é dono de apartamento no bairro nobre da cidade, tem o carro do ano e viaja frequentemente a lazer. Para efeitos de fixação de alimentos, o descompasso entre o declarado e a realidade fará com que o juiz considere o padrão de vida que mostra ter, e não aquele de traços franciscanos.

A situação é hipotética para esta singela anotação, mas, infelizmente, ocorre com grande frequência na praxe forense.

Nessas circunstâncias, caso seja instaurado o pleito revisional, ao alimentante faltarão elementos convincentes para mostrar que a sua qualidade de vida foi afetada pela pandemia. Afinal, se os seus demonstrativos de renda não refletem a realidade, o que poderá fazer? A situação é de difícil contorno, pois pode trazer consigo a confissão de malfeitos.

Pensão alimentícia para os filhos e prisão civil. De acordo com a Constituição Federal, aliada à posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal no enunciado 25 da sua Súmula Vinculante, atualmente, em nosso país, a única prisão civil por dívida permitida é a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

Nosso Código de Processo Civil estabelece que o “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.

A prisão civil não é sanção ou pena. Tem natureza jurídica de medida coercitiva, sendo uma ferramenta para pressionar o devedor a realizar o pagamento. Guardadas as proporções, exerce função parecida com as multas arbitradas para, por exemplo, que alguém faça, deixe de fazer ou entregue alguma coisa.

Os alimentos possuem a característica de serem atuais, significando que o alimentando tem a “necessidade agora” e não suporta tolerar atrasos. Dessarte, a pressão exercida pela prisão civil recai apenas sobre os débitos alimentares mais recentes; para os mais antigos, a lei elegeu a expropriação como forma de cobrança.

É, de fato, medida extrema, de evidente excepcionalidade, sobre a qual há intensas discussões. Contendas à parte, talvez seja a medida mais efetiva para fazer o devedor honrar sua obrigação, pois pode submetê-lo de 01 a 03 meses de clausura a ser cumprida no regime fechado em estabelecimento prisional, ficando, contudo, separado dos chamados presos comuns.

Ocorre que a pandemia de Covid-19 acabou por alterar esse regime jurídico. No mês de março/2020, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Recomendação nº. 62, a qual passou a aconselhar aos juízes com competência cível a considerar a prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, observando o contexto local de disseminação do vírus.

O Tribunal de Justiça capixaba publicou ato corroborando a Recomendação.

Obviamente que a prisão domiciliar é mais branda que o critério adotado pelo Código de Processo Civil. Coloca-se em xeque a efetividade da medida instituída pela lei, pois, em tempos de Covid-19, o isolamento social é medida que se impõe. Ora, qual coação sofre devedor de alimentos em prisão domiciliar? Por um motivo ou por outro já suportaria a restrição na liberdade ambulatória na própria casa.

Se por um lado quer-se tomar medidas para vedar a propagação do vírus, evitando, em consequência, o aumento das mortes, não é possível escapar da conclusão que a inadimplência dos alimentos consolida o risco da inanição. Como se vê, a posição institucional privilegiou a medida imediata de saúde pública.

O juízo de ponderação é de difícil exercício, pois a Recomendação do CNJ é capaz de retirar do alimentando a única perspectiva de ver cumprida a obrigação. Questionamentos de todas as ordens surgem, mas, privilegiando a objetividade, a principal questão é: como, então, os juízos estão recebendo e aplicando a medida? Observados ao menos quatro comportamentos que podem ser adotados:

1) O trâmite do processo fica informalmente sobrestado, aguardando-se a evolução do vírus e o comportamento da pandemia. Nessa situação, pode ou não já existir ordem de prisão. A solução fica circunscrita a uma “gestão de gabinete”, posição controversa, pois pode atingir a ordem cronológica de conclusão dos feitos.

Se por um lado há consenso de que a prisão domiciliar corre grande risco de ser ineficaz, por outro lado é inimaginável que o devedor de alimentos compareça para dar andamento processual e peça para ser preso na modalidade domiciliar, mesmo que lhe seja muito menos traumática.

2) A apreciação dos pedidos de prisão ficam suspensos por decisão do juízo. Desse modo, naquela Vara não haverá expedição de mandados de prisão no período de contágio da Covid-19, pois há o consenso de que em liberdade o alimentante poderá encontrar meios de pagar a dívida, mas se ficar em prisão domiciliar as chances de não honrar o pagamento são quase de 100%.

3) Utiliza-se inteligência semelhante à do item anterior, mas na situação de o devedor estar preso. Há suspensão do cumprimento da clausura, colocando-o em liberdade. Passado o risco de contágio da Covid-19, deverá cumprir o período remanescente em regime fechado. Na prática, o alimentante ganha uma “segunda chance”, pois enquanto estiver solto poderá arrumar meios de pagar o débito e evitar o retorno à prisão.

Existe sério risco de fuga do alimentante. Todavia, para quem se alia a essa posição, a possibilidade de o devedor sumir não é tão perniciosa ao alimentando quanto às consequências da inadimplência quase certa por conta do cumprimento da prisão em domicílio.

4) O processo tem trâmite regular e o juiz decreta a prisão domiciliar do alimentante, sem realizar qualquer juízo de eficácia da medida. Parece um caminho que fulmina as chances do credor, pois no conforto do lar é difícil que se sinta compelido a pagar qualquer quantia.

Nessa situação, parece que o único fator que pode pressionar o executado é a repercussão da notícia da sua prisão e o constrangimento pelo qual passará ante a reprovabilidade da medida. Reconhece-se perante a sociedade que deixa seu dependente sem o adequado amparo material.

É evidente que não é possível contar com esse elemento, haja vista o seu elevado grau de subjetividade. De forma bem simples: há pessoas que não se importam com a sua reputação, por mais estranho que isso possa parecer.

Penso que o período de excepcionalidade torna possível a busca bens do devedor de alimentos, mesmo que esteja livre. A posição é polêmica, pois a letra fria da lei faria com que houvesse a conversão do “rito da prisão” pelo “rito da expropriação”, afastando, em tese, a possibilidade de prisão civil do alimentante. Em outra oportunidade a cizânia poderá ser exposta neste espaço.

De todo modo, caso o alimentando vislumbre possibilidade real de atingir bens do devedor de alimentos, poderá, como já mencionado, abrir mão do pedido de prisão e buscar o bloqueio, a penhora e a alienação ou adjudicação de bens do executado. É uma posição que somente o credor pode tomar, sendo inviável que o juiz o faça de ofício.

Como se vê, não existe solução fácil. É preciso calma, clareza e sensatez. O controle da ansiedade é fundamental para evitar a tomada de medidas precipitadas. Exige-se, nesse momento, sensibilidade e preparo técnico em graus máximos.

Por Leonardo Semensato Cabral, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo
Advogado atuante em Direito de Família



Nota de atualização. Em 12.06.2020, foi publicada a Lei nº. 14.010, e, no seu art. 15, determinou que até o dia 30.10.2020 as prisões civis por dívidas alimentícias devem ser cumpridas exclusivamente sob a modalidade domiciliar.


É disposição de evidente caráter temporário, conforme autoriza o art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Basicamente, o ordenamento jurídico permite que execução dos alimentos pode ser realizada mediante dois procedimentos: 1) um rito pelo qual se busca a satisfação da dívida através da busca dos bens do devedor – dinheiro, imóvel, carro, etc.; 2) uma via que objetiva o pagamento sob a ameaça da prisão civil.

Ao optar pelo rito da expropriação, o exequente não pode se valer do pedido de prisão civil. Por outro lado, caso escolha pelo procedimento que permite a restrição da liberdade, implementada a medida de clausura e permanecendo o débito, o credor pode perseguir o seu direito com o uso de instrumentos expropriatórios – busca de dinheiro, imóvel, carro, etc.

O novo diploma legal afastou temporariamente o disposto no art. 528, § 3º, da Lei nº. 13.105/2015, justamente a possibilidade de prisão civil em regime fechado e em estabelecimento prisional. Dessa forma, até o dia 30.10.2020 a prisão civil do devedor de alimentos deverá ser cumprida exclusivamente em regime domiciliar.

Para contemporizar, o legislador permitiu expressamente ao alimentando exigir o cumprimento da obrigação mesmo que preso o alimentante. Essa passagem, de fato, nada acresce, pois, como anotado, nessas situações já era permitida a perseguição de bens do devedor.

Como não poderia ser diferente, a alteração não impõe seja decretada a prisão domiciliar, mas sim que, caso seja esse o caminho, assim será cumprida até o dia 30.10.2020. Portanto, as opções comentadas neste artigo continuam atuais.

Conclusivamente, pela letra fria da lei, passado o dia 30.10.2020, aquele que estiver cumprindo a prisão no regime domiciliar poderá ter o cárcere convertido para o regime fechado, pois, a partir de então, o art. 15 da Lei nº. 14.010/2020 não mais terá vigência, voltando a ser aplicada íntegra do art. 528, § 3º, da Lei nº. 13.105/2015.

Além do mais, o novo dispositivo estabelece que a prisão será cumprida exclusivamente sob regime domiciliar até o dia 30.10.2020, e não que todas as prisões civis decretadas até o dia 30.10.2020 serão cumpridas exclusivamente em regime docmiliar. A diferença é sutil, mas de grande relevância prática, pois decretado o cárcere, passado o dia 30.10.2020 e remanescendo prazo, vê-se a possibilidade de cumprimento do restante em regime fechado.

A lei estabeleceu o termo final da clausura exclusiva em regime domiciliar, e não a garantia de que todas as prisões decretadas até o dia 30.10.2020 serão cumpridas integralmente em regime domiciliar. É bom que o devedor fique com as barbas de molho, pois dificilmente mais uma vez será salvo pelo gongo da pandemia.

Contudo, essas serão as cenas dos próximos capítulos.

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